O assassinato do Tenente Câmara, subdelegado de Três Barras


  • 22 de Julho de 2020

Disputas políticas

Em 20 de outubro de 1916, a assinatura do Acordo de Limites entre Paraná e Santa Catarina resultou na transferência do então município paranaense de Três Barras ao controle catarinense, na condição de distrito de Canoinhas. Com a mudança, houve um acirramento na disputa pelo poder na região. O número de cargos, o orçamento e a importância política de Três Barras foram, teoricamente, reduzidos. Na prática, o superintendente municipal da Três Barras paranaense, Dídio Augusto, perdeu seu cargo. Em seu lugar, assumiu o novo intendente do distrito catarinense de Três Barras, Oswaldo de Oliveira. O resultado consistiu no fortalecimento do poder político desta liderança, a mais proeminente da localidade.

 

 

Em pouco tempo, Oswaldo e sua mantenedora, a Lumber Company, intentaram a conquista da superintendência municipal de Canoinhas. No entanto, no ano de 1918, Otávio Xavier Rauen assumiu o cargo, barrando a tentativa dos chefes políticos do novo distrito de Três Barras de ascenderem ao poder na sede do município. Oswaldo conseguiu mobilizar grande número de correligionários, criou um impasse dentro do Partido Republicano local e impediu a posse de Rauen.

 

 

Após a resolução do impasse, com a vitória política da facção de Rauen, no ano de 1918, e, no ano seguinte, a exoneração de Oswaldo de Oliveira do cargo de intendente distrital de Três Barras, também houve uma mudança na titularidade do cargo de subdelegado de polícia daquele distrito. O então subdelegado, Theófilo Becker, foi destituído do cargo. Em seu lugar, assumiu o tenente da Força Pública de Santa Catarina, Francisco Arruda Câmara Junior, transferido de Joinville e sem quaisquer vínculos com a empresa ou com as tramas políticas na região de Canoinhas.

 

 

 

 

 

O assassinato do novo subdelegado de Três Barras

A substituição do comando da delegacia de Três Barras não ocorreu de forma pacífica. Desde o início da titularidade do tenente Câmara, surgiram muitos problemas provenientes de diversas questões, especialmente no que tange a resistência oferecida pelo antigo ocupante do cargo, Theófilo Becker. O subdelegado destituído ocultou documentos da delegacia de polícia de Três Barras. O novo subdelegado, tenente Câmara, deparou-se com um arquivo vazio, pois grande parte da documentação do período em que seu antecessor ocupara o cargo, havia desaparecido. Ocorreram diversas tentativas de reaver os documentos.

 

 

 

 

 

Nas declarações prestadas pelo próprio Theófilo Becker, fica evidente sua resistência em entregar a documentação. Segundo ele, após essa intimação do tenente para devolver o material, o delegado especial, João de Deus Ferreira, lhe procurou para saber onde estava o arquivo da polícia. Desaparecer com a documentação não se tratava apenas de sabotar o trabalho do novo subdelegado. Certamente o material revelaria muito sobre as atitudes ilícitas do antigo ocupante do cargo, especialmente em relação aos negócios escusos da Lumber e a parcialidade na condução dos inquéritos, resultantes de acidentes de trabalho ocorridos na companhia.

 

 

 

 

A empresa utilizou-se de um leque amplo e variado de estratégias para lidar com os acidentes, as quais poderiam ser: o recolhimento da vítima ao hospital da própria companhia (reforçando um possível argumento de tratamento adequado à vítima); o cálculo proposital das indenizações em montante inferior ao devido, mediante interpretações premeditadamente equivocadas do regulamento de acidentes; procrastinação do pagamento de indenizações e da celebração de acordos; fraudes no ato do pagamento das indenizações, já que muitos operários eram analfabetos e quem assinava os acordos, em substituição aos reclamantes, era o próprio subdelegado; rápida homologação de acordos com valores reduzidos, aproveitando as prementes necessidades de sobrevivência dos trabalhadores feridos (e sem trabalho) e de suas famílias – após a homologação desses rápidos acordos, com valores em montante inferior ao efetivamente devido, a empresa negava-se ao pagamento de outros valores, argumentando que o trabalhador já havia aceitado o acordo e tentava caracterizá-lo como um aproveitador; readmissão de operários acidentados, o que permitia à empresa argumentar que o ferimento decorrente do acidente era insignificante, pois o mesmo já havia retornado ao trabalho (muitas vezes com fortes dores, ou com sua capacidade laboral reduzida e seu salário tolhido); laudos periciais fornecidos em juízo pelo médico da empresa, Oswaldo de Oliveira, invariavelmente nomeado perito legal para avaliação dos ferimentos dos trabalhadores, o qual normalmente, subjugava as limitações dos trabalhadores; e, finalmente, a ausência de comunicação de acidentes às autoridades competentes.

 

 

 

 

Nessa escalada de tensões, a ruptura definitiva entre o ex-subdelegado e o recém-empossado na função, decorreu da contratação, efetuada por Theófilo Becker, de um foragido da polícia para ocupar a função de chefe de uma das oficinas da Lumber. O tenente Câmara recebeu denúncia contra Hugo Bensch e enviou dois policiais até a companhia Lumber para conduzir o trabalhador à sua presença. Durante a incursão, por volta das 12h00min, do dia 28 de outubro de 1920, Theófilo surgiu à frente de um grupo de trabalhadores da companhia e impediu a prisão do denunciado.

 

 

 

A atitude de Theófilo representou nova afronta à autoridade do subdelegado, tenente Câmara. Segundo Antonio Gaião, um dos acusados, após o ocorrido, os componentes do grupo “saíram gritando que tinham tomado o preso do tenente”. Na tentativa de reafirmar sua autoridade, o tenente Câmara mandou intimar Theófilo para comparecer à delegacia, naquele mesmo dia, às 20h00min.

 

 

 

 

A partir desse momento, Theófilo decidiu findar com as perturbações do tenente Câmara. Naquela mesma tarde, encontrou-se com diversas pessoas na estação de Três Barras, localizada exatamente em frente aos portões da companhia Lumber. Naquele local, aliciou indivíduos e iniciou a organização de um grupo, declarando que a intenção era promover a retirada do tenente do distrito de Três Barras.

 

 

 

Durante a tarde do dia 28, Theófilo percorreu a vila requisitando auxílio para compor o grupo que, alegava ele, expulsaria o tenente de Três Barras. Em sua casa, reuniu muitas pessoas e as armou com rifles winchesters e revólveres. Muitos depoentes alegaram que a intenção do grupo se restringia a expulsar o tenente da localidade. Luiz José Guerra, operário da Lumber, disse que, naquele dia, ao sair do trabalho, por volta das 18 horas:

 

 

 

 

 

“Dirigiu-se para sua residência para jantar, logo apareceram ali o espanhol José Casado Dias e Antonio Gaião, os quais lhe convidaram para tomar parte em um grupo de pessoas que nesta noite iam ao quartel intimar ao tenente e obrigá-lo a embarcar para fora deste distrito na manhã do dia 29” (Processo Crime por Homicídio do Tenente Francisco Arruda Câmara Junior. Réu: Theófilo Becker e outros. Canoinhas, 1920).

 

 

 

 

 

 

Os homens do corpo de segurança da Lumber aliciaram operários da empresa. Nesse contexto, é admissível considerar que o propósito consistia em constituir um grupo para tornar a ação um ato coletivo da população, afastando a imputação de culpa a Theófilo. O Operário Avelino Pimenta:

 

 

 

 

“Disse que às 18 horas do dia 28 de outubro, tendo ele depoente com outros companheiros que trabalham na Lumber, largado o serviço se dirigiram para a casa de Luiz Guerra, fornecedor de comida a ele depoente e outros seus companheiros, ali chegando e antes de irem pra mesa de jantar, compareceram José Casado Dias e Antonio Gaião [guardiões] que em nome de Theófilo Becker os intimou para irem ao quartel fazerem embarcar o tenente Câmara (Processo Crime por Homicídio do Tenente Francisco Arruda Câmara Junior.” (Réu: Theófilo Becker e outros. Canoinhas, 1920).

 

 

 

 

Na noite do fatídico dia 28 de outubro de 1920, o grupo organizado por Theófilo Becker reuniu-se em sua residência e seguiu em direção à delegacia de polícia de Três Barras. Liderando-o, Theófilo, seguido pelos guardiões da Lumber, Manoel Soares Fabrício e Antonio Diogo. Atrás destes, seguiam os operários da companhia, Avelino Pimenta, Luiz José Guerra e Antonio Guerra, além de outros indivíduos.

 

 

Homens do corpo de segurança da Lumber Company/Acervo pessoal

 

Ao chegarem às portas da delegacia, Theófilo, Manoel, Antonio e José Casado Dias, adentraram o recinto e encontraram o tenente Câmara conversando com dois moradores do distrito. Theófilo disse ao tenente: “Estou aqui, me prenda agora, tenente”, e imediatamente desferiram uma descarga de tiros contra a vítima, que morreu instantaneamente, atingido por oito tiros de revólver calibre 38.

 

 

Jornal República. Florianópolis, 04/11/1920/Reprodução

 

A chegada do novo subdelegado, a Três Barras, repercutiu sobre uma série de interesses da companhia. A Lumber perdeu o favorecimento que até então dispunha na condução dos casos por acidente de trabalho. Sem o apoio do subdelegado, a tendência era de um aumento significativo nos custos com indenizações, além da perda de outras vantagens, como o auxílio às suas necessidades repressivas e coercitivas. Contudo, a empresa pretendia continuar a contar com os serviços de Theófilo. Após sua destituição, ele foi imediatamente contratado pela Lumber como uma espécie de compensação pelos trabalhos prestados à empresa. É evidente que após anos ocupando um cargo tão influente naquela comunidade, a experiência acumulada por ele e a capacidade de resolver problemas pouco convencionais, eram habilidades consideradas muito úteis pelos diretores da companhia.

 

 

Jornal República. Florianópolis, 04/11/1920/Reprodução

 

A arquitetura da execução do crime demonstra que o ato não foi uma vingança pessoal, motivada por rivalidade ou inveja. Foi um crime de fundo político, relacionado às disputas que marcaram a Comarca de Canoinhas, nos anos 1919-1920.