Populações indígenas na região de Canoinhas


  • 25 de Junho de 2020

A região que compreende o município de Canoinhas foi morada de populações indígenas, principalmente Xokleng, durante milhares de anos. Os Xokleng constituíam uma sociedade de caçadores-coletores e até o século XVIII ocupavam toda a região Sul do Brasil. Conforme ocorreu a ampliação da fronteira de expansão, especialmente a partir da ação de paulistas e, de forma mais efetiva, por meio da abertura da Estrada de Tropas, a partir de 1728, as populações originárias foram concentradas na região do planalto catarinense e passaram a disputar suas próprias terras contra os novos invasores. Consequentemente, a região tornou-se epicentro de uma disputa territorial.

Mapa: território histórico dos Xokleng. In: Crendo (2005)

 

 

A EXPEDIÇÃO DE 1883

 No ano de 1883, o engenheiro Alfredo Ernesto Jacques Ouriques realizou uma expedição pela zona fronteiriça situada entre as províncias do Paraná e de Santa Catarina, a fim de determinar os limites geográficos e elaborar material cartográfico mais confiável. Entre outras expedições menores, em 11 de março daquele ano, Alfredo partiu com um grupo de exploração de um ponto na estrada entre Rio Negro e Canoinhas, percorrendo a extensão do rio Canoinhas em busca da localização de sua foz, fazendo o levantamento de sua margem esquerda. O grupo foi acompanhado por duas canoas que conduziam o material e víveres para dois meses.

 

 

 

Havia preocupação entre os membros da expedição, pois “tínhamos de atravessar considerável extensão de desertos desconhecidos, habitados por índios bravos e feras” (Jornal Conservador. Desterro, 24/11/1888). A expedição não estabeleceu contato direto com os indígenas da região, mas identificou intensa utilização de toda aquela área pelos silvícolas: “em todo o curso do Canoinhas encontrávamos pontes, feitas com árvores derrubadas, de ambas as margens para o leito do rio, das quais se servem para atravessá-lo”.

 

 

 

 

A expedição logrou chegar a “este salto, a que a voz do povo denominou Salto do Canoinhas”, uma formação geográfica onde o rio apresenta profundidade reduzida. Embora o chefe da expedição tenha se apresentado como desbravador do território e responsável pela ‘descoberta’ do Salto, pois, “não constava ter ainda chegado a essa região explorador algum”, a descrição do local indica uma ocupação antiga e a presença intensa dos indígenas. Foi constatada a existência, em ambas as margens, de “duas picadas de índios”, e percebida a “passagem em diferentes épocas, o que me fez supor que era o caminho habitual dos silvícolas” (Jornal Conservador. Desterro, 24/11/1888).

 

 

 

 

 

COVI E ‘FELÍCIO’: OS MENINOS XOKLENG DA REGIÃO DE CANOINHAS

Nos anos seguintes, incrementou-se a proximidade e os embates entre os imigrantes recém chegados e os grupos indígenas, habitantes da terra. Um dos episódios passíveis de análise refere-se a captura e sequestro de um jovem menino indígena de 14 anos por parte de um dos líderes da colônia de imigrantes que havia sido instalada em Rio Negro, em 1829. O Sr. Maeder, um sueco que costumava administrar a catequese e realizar expedições pelo sertão, manteve o menino na vila de Rio Negro, vivendo com sua família e chegou a levar o pequeno Xokleng até Curitiba onde “tirou bem um retrato”. Quando retornou ao Rio Negro, tomou conhecimento que os “botocudos” rondavam durante as noites a sua casa e as demais, em busca do “bugrinho”. Seu nome era Covi: “Esta criança bonita e bem constituída, tinha o cabelo completamente rapado, não usava tanga e simplesmente trazia como adorno um T de madeira bem polida, suspenso de um furo no meio do lábio inferior e cordas de imbira enroladas em volta dos tornozelos e dos pulsos, as quais afrouxava quando queria correr ou fazer qualquer outro exercício. Mostrava-se muito admirado e muito observador de tudo quanto via, principalmente dos vidros das janelas que, continuamente lhe prendiam a atenção. Revelava especial cuidado e dedicação para com o filhinho mais novo do Sr. Maeder, criança de poucos meses, correndo a tocar nos braços deste senhor assim que o via chorar. Conservou-se pouco mais de um mês no Rio Negro e nunca pronunciou palavra alguma” (Jornal Conservador. Desterro, 03/12/1888). Covi conseguiu fugir e retornar aos seus familiares saltando no rio Negro e atravessando-o a nado.

 

 

 

 

 

Meses mais tarde, outro menino indígena foi aprisionado nos matos da Estiva, atual município de Papanduva, tendo sido levado a Rio Negro, onde também passou a viver com uma família de imigrantes. Este menino, batizado com o nome de Felício, aprendeu a falar português e relatou que o primeiro menino apreendido se chamava Covi, era filho do cacique e que após seu aprisionamento seu pai ordenara aos chefes que buscassem o menino. Logo após a expedição ter retornado, sem Covi, o mesmo conseguiu fugir e retomar ao convívio com os indígenas. O depoimento de um dos imigrantes retransmite informações passadas pelo menino índio: “nunca me hei de esquecer da precisão com que me descrevera o Salto do Canoinhas, que me contou haver atravessado muitas vezes às costas de seus pais” (Jornal Conservador. Desterro, 03/12/1888).

 

 

Família de Botocudos. Wied-Neuwied. In: Brasilien Bibliothek(Katalog), Löschner, 1988, V.1

 

 

 

Com base nas informações coletadas, pode-se perceber intensa circulação dos indivíduos do grupo Xokleng, que habitavam o território. “Felício”, que fora capturado nos campos da Estiva, cerca de trinta quilômetros de distância do Salto do rio Canoinhas, referenciou o local por ter atravessado o Salto carregado pelos pais. Levado para Rio Negro, relatou fatos que haviam ocorrido com Covi, filho do chefe, que fora capturado próximo a vila. Portanto, havia intensa movimentação dos indígenas, que percebiam seu território sendo ocupado paulatinamente pelos invasores.

 

 

 

 

 

Conquanto o final feliz para Covi, a documentação disponível permite identificar outros embates entre os imigrantes instalados em Rio Negro e os indígenas do entorno, além da tensão presente em toda aquela área. Em vinte e sete de fevereiro de 1872, um dos colonos de Rio Negro, enviou solicitação por escrito ao presidente da Província do Paraná, requerendo uma concessão de terras para iniciar uma fazenda de criação naquela vila. A solicitação do colono continha o pedido de desconto sobre o valor da braça de terra, tendo em vista que o local “é infestado por hordas de bugres”, o que lhe traria mais despesas para “limpar” a terra (Catálogo Seletivo de Documentos Referentes aos Indígenas no Paraná Provincial, 1871-1892).

 

 

 

 

Conforme o final do século XIX se aproximava, os conflitos entre indígenas e colonos se difundiram por toda a região e, em muitas ocasiões, tiveram desfechos violentos. Em 1890, o jornal carioca O Apóstolo, mantido pela Igreja Católica e distribuído por vários estados do país, publicou em pequena nota: “Nas fronteiras do Paraná, aquém do rio Canoinhas, deu-se um morticínio bárbaro. Alguns tropeiros, passando a Serra foram plantar em terras dos indígenas, mas estes opondo-se, lutaram e na luta foi flechado um moço que morreu algumas horas depois. Esta morte foi motivo para perseguição e vingança horrível […] foram mortos uns 40 índios, não poupando-se mulheres nem crianças! Os vencedores trouxeram os troféus da vitória, como arcos, flechas, pedras, cordas, etc. Seremos povo civilizado?” (Jornal O Apóstolo. Rio de Janeiro, 02/04/1890).

 

 

 

 

 

A SERRA DAS MORTES

Como resultado do avanço dos imigrantes, as populações Xokleng, que ocupavam a região, foram paulatinamente expulsas pelo avanço do homem branco. Os enfrentamentos entre indígenas e colonizadores, na região de Canoinhas, eram frequentes e chegaram às páginas de jornais do período. Entre os conflitos de que há registros, destaca-se um embate na região do Timbozinho, interior do atual município de Canoinhas e próximo do local onde anos mais tarde seria construído o reduto de Pedras Brancas, durante a Guerra do Contestado (1912-1916). O ‘ataque’ dos indígenas ocorreu em dezembro de 1898 e resultou na morte de dezesseis colonos. Na verdade, o ‘ataque’ foi a reação ao assassinato de um indígena por parte dos colonizadores, invasores das terras, que buscavam consolidar sua presença no local (Jornal A República. Curitiba, 08/12/1898). O conflito resultou na alcunha recebida pela localidade: Serra das Mortes.

 

 

Pontas de flechas e de lanças utilizadas pelos botocudos. Es-se rico material foi encontrado e preservado pelo Sr. Élio Via-leski, da localidade de Serra das Mortes

 

 

ONTEM E HOJE

Apesar da intensa presença dos Xokleng em toda a região de Canoinhas, mantém-se uma narrativa na qual os imigrantes europeus são considerados heróis que viabilizaram a ocupação da região e deram os primeiros passos em relação ao desenvolvimento, em detrimento dos silvícolas que aqui estiveram antes e testemunharam o amanhecer de muitos dias. Versões que não se encaixam no perfil do imigrante, do mito fundador e, principalmente, que reconhecem a pré-existência das populações indígenas, não encontram espaço na narrativa oficial da região, que omite, oculta e oblitera os indígenas, ex-escravos, caboclos, tropeiros, monges, peões e agregados. No fim, tradicionalmente coube ao vencedor a narrativa destes processos, mascarando realidades, ofuscadas pela lente deturpada deste, como se as reais vítimas fossem os obstáculos no caminho de desenvolvimento a ser trilhado.

 

 

Índios Botocudos, Região de Palmas, PR – 1910. Foto de Claro Jansson