Pixirum: trabalho, diversão e solidariedade


  • 25 de Junho de 2020

No início do século XX, o habitante da região do planalto catarinense mantinha um modo de vida que dependia da agricultura, da criação de animais e da exploração das matas. Após realizar o apossamento da terra, ali construía seu rancho com as próprias mãos, utilizando a madeira extraída de seu terreno. Nos fundos constituía uma pequena roça cabocla, com variadas culturas, o que lhe assegurava certa porção de alimento durante praticamente todo o ano, juntamente com algumas espécies de árvores frutíferas que suplementavam sua alimentação. Criava alguns pequenos animais – galinhas e porcos – ao menos uma vaca para tirar o leite e mais algum cachorro de estimação para ajudar na caçada e na lida com os animais. Mantinha uma arma, se possível um rifle winchester, para a caça abundante, a proteção de sua posse e a defesa de sua vida e da sua honra.

 

O sertanejo, através da exploração das matas, efetuava a coleta do pinhão (semente da Araucária) e realizava a extração da erva mate do erval nativo disponível mais próximo. Tanto o pouco que sobrava de sua roça, quanto a erva extraída, eram destinados a pequeno comércio – através da troca – com os bodegueiros da localidade ou com os tropeiros que entrecortavam a região. O objetivo era adquirir produtos essenciais: sal, para conservar a carne; pólvora para ativar o rifle; querosene para iluminar o rancho; açúcar amarelo e café para começar o dia e cachaça para alegrar a alma.

 

 

 

 

 

Uma das razões para que a lavoura não fosse ampliada e desenvolvida com objetivos comerciais, consistia no fato de não haver um mercado consumidor disponível para aqueles produtos. Na área urbana do município de Canoinhas, não havia mais do que três ou quatro casas comerciais, as quais também nem sempre empregavam dinheiro nas relações com os pequenos agricultores.

 

 

 

 

As estradas geravam dificuldades para os pequenos agricultores que tentavam transportar o excedente de sua roça. O uso da carroça, o meio de transporte mais adequado para a transferência desse excedente da produção, nem sempre era possível em função das condições das estradas. Por isso, a viagem de carroça costumava ser combinada com outros vizinhos, cada um se deslocando com a sua. Suplantar as adversidades de transporte ratificava a importância dos vizinhos e do auxílio mútuo como elemento de sobrevivência para aquela população.

 

 

 

 

Na região, havia uma intensa circulação de pessoas, na maioria das vezes com o propósito de trocar os excedentes, os quais eram obtidos, amiúde, através do uso comunal das terras, tanto para a criação de animais quanto para o cultivo do solo, muitas vezes realizados coletivamente.

 

 

 

 

Apesar de residir em meio à mata, dificilmente algum morador da região vivia isolado, sem contato com o ajuntamento populacional mais próximo, como a sede do distrito ou o município vizinho. Ao menos até a venda mais próxima o sertanejo se dirigia em diferentes épocas do ano, pois, conforme já mencionado, realizava certo comércio com os bodegueiros, trocando algum excedente de sua roça, o que lhe permitia momentos de interação e sociabilidade, nos quais poderia obter informações e se inteirar das novidades. A maioria da população mantinha contato periódico com seus vizinhos, percebendo, a partir de sua posse, o local como seu, construindo assim um sentimento de pertencimento a uma unidade.

 

 

 

 

É plausível considerarmos que a ocupação de todo o planalto catarinense decorreu da formação dos chamados bairros rurais. O bairro rural era o agrupamento de algumas ou muitas famílias cuja conexão não se caracterizava apenas pela proximidade. As habitações poderiam estar bastante próximas, como em um povoado, ou tão afastadas que o observador não conseguiria perceber que compunham uma unidade populacional.

 

 

 

 

 

Os habitantes do bairro rural construíam seus vínculos pela convivência, pela necessidade de auxílio mútuo para os trabalhos mais pesados e urgentes, bem como pelo compartilhamento dos momentos lúdicos e religiosos.

 

 

 

Dentre as práticas de auxílio mútuo, o pixirum representa o exemplo mais evidente deste universo determinado pela sociabilidade, no qual o imbricamento entre trabalho e diversão, transcendia uma mera reunião de trabalho e estabelecia relações de solidariedade e igualitarismo entre indivíduos convivendo em um ambiente comum.

 

 

 

 

O PIXIRUM

Realização de um pixirum na região de Irati, Paraná, na década de 1960 (MANEIRA, 2014)

No planalto catarinense, a extração da erva-mate, assim como a produção de alimentos, foram práticas historicamente desenvolvidas tendo como base o trabalho familiar e/ou o trabalho coletivo não-remuerado. Desde o século XIX, adentrando o século seguinte, estas práticas prevaleceram. Exemplarmente, pode-se citar uma referência encontrada em uma fonte judicial do ano de 1910, no qual se pode ler a seguinte descrição: “Todos os trabalhos são executados pelo próprio posseiro e seus vizinhos, que se auxiliam reciprocamente, trabalhando de parceria”. Constata-se a importância do auxílio mútuo para execução do trabalho agrário.

 

 

 

 

As atividades de auxílio mútuo são comuns em diferentes regiões e épocas, especialmente entre as camadas mais pobres da população, as quais obviamente mais necessitam de auxílio para assegurar a sobrevivência, o que resulta no fortalecimento dos laços de solidariedade horizontais.

 

 

 

 

Na nossa região, o mutirão era denominado pixirum. O pixirum permitia que tarefas praticamente impossíveis para um único homem pudessem ser realizadas em poucos dias, como a construção de casas ou galpões. Era comum a convocação do pixirum para roçadas, limpezas de terrenos e colheitas. Essa prática consistia, essencialmente, em uma reunião de trabalho, uma atividade costumeiramente realizada pela população sertaneja. Era organizado em situações de atraso da roçada, para a carpida posterior à realização do plantio, e, mais raramente, no período de colheita. Principiava mediante convite do indivíduo que se encontrava com o trabalho em atraso. O convite se dava com a passagem do beneficiário pelas casas dos vizinhos, marcando data e hora específicas para a realização das tarefas: “Naquele horário, o pessoal chegava com a foice, se fosse pra roçá. Se fosse pra carpi também, chegavam com a enxada”, “era uma combinação”.

 

 

 

 

A suplementação da mão de obra para os trabalhos da agricultura consistia na principal motivação para a execução do pixirum, porém, outros fatores contribuíam para sua efetiva realização. O aspecto lúdico, materializado no consumo de bebida e nos festejos de encerramento das atividades, por meio de bailes, também consistia em estímulo para a convocação e realização de pixiruns.

 

 

 

 

 

O pixirum poderia ser coordenado por um dos participantes, o qual era chamado de ‘corteiro’, responsável por ‘tocar o serviço’, o que significava evitar desvios na execução das atividades – em decorrência do considerável número de homens trabalhando – e evitar possíveis acidentes com as ferramentas. Normalmente, reuniam-se de dez a vinte ‘foiceiros’ para a realização dos trabalhos. O indivíduo que ocupava a função de corteiro – cuja titularidade se alternava de uma reunião para outra – também organizava os trabalhos para que o eito da roçada, ou seja, o caminho deixado pelos roceiros, conservasse certo padrão de corte, com pequenos grupos trabalhando em diferentes sentidos.

 

 

 

Realização de um pixirum na região de Irati, Paraná, na década de 1960 (MANEIRA, 2014). Naquela região, a prática do pixirum perdurou por mais tempo, resultado da ausência de grandes corporações estrangeiras (caso da Lumber e da ferrovia) que alteraram o modo de vida da população do planalto catarinense

Em condições normais, a reunião de trabalho durava um único dia. As exceções ocorriam nas épocas de colheita, quando, em função das imposições climáticas, urgia a retirada dos grãos do campo, e os trabalhos poderiam ultrapassar o período de um dia.

 

 

 

 

Esse sistema fomentava o desenvolvimento de uma consciência coletiva: todos juntos formavam um único grupo, e seu eficiente funcionamento dependia da participação de todos. A ausência de qualquer forma de remuneração em contrapartida aos serviços prestados, principalmente no que se refere a valores monetários, acentua a importância da colaboração solidária. Além disso, nessas formas de participação, cada indivíduo tem um grau de importância e de pertencimento relativamente igual, o que possibilita o aumento da confiança e permite futuras colaborações.

 

 

 

 

Dentre os elementos fundamentais que caracterizavam o pixirum, estava a obrigação intrínseca de fornecer a alimentação, tanto como necessidade para a continuidade dos trabalhos por maior período, como aspecto do comportamento do sertanejo, que não aceita a negativa ao alimento oferecido. Ou seja, em retribuição à ajuda na roça, o beneficiário “só dava o almoço, a cachaça e fazia o baile de noite”.

 

 

 

Enquanto os homens se dedicavam ao roçado, à carpida ou à colheita, as mulheres, coordenadas pela companheira do beneficiário, preparavam a refeição. Normalmente, um animal assado e feijão eram os ingredientes principais para o almoço. A obrigação moral do beneficiário em oferecer alimento, bebida e o baile de encerramento, acabava por estimular o consumo de bebida alcoólica. Havia consumo exacerbado de cachaça durante os trabalhos na roça.

 

 

 

 

Ao final do longo e extenuante dia de trabalho, imbuindo-se o beneficiário da tranquilidade resultante do adiantado do roçado ou do encerramento da colheita, chegava a hora mais aguardada por todos os presentes: o baile de pixirum.

 

 

 

 

 

O BAILE DE PIXIRUM

Esta celebração festiva que demarcava o encerramento dos trabalhos, reunia as mulheres dos envolvidos nas atividades do dia, outros parentes e vizinhos, e, inclusive, aqueles que não puderam comparecer no trabalho.

 

 

 

 

Nas ocasiões em que o pixirum era organizado para efetuar a colheita dos grãos, o baile era realizado exclusivamente ao final do dia de encerramento dos trabalhos e reunia um número maior de indivíduos. Essa retribuição festiva representava um gesto de amizade, um momento de celebração por uma forma de cooperação eficiente e cujo significado transcendia a simples necessidade imediata de suplementação de mão de obra, construindo, fortalecendo e irrigando uma rede ampla de coletividade, que proporcionava aos participantes uma experiência social integradora. Na região de Canoinhas, há uma prática que lembra, em alguns traços, o pixirum, e podemos supor que seja resultado de sua permanência. Denominada de “A troca de dia”, é empregada principalmente na cultura do tabaco: “A troca de dia é assim: se eu vou hoje trabalhar pro vizinho, o vizinho me devolve esse dia em serviço. Se for trocado o dia, é um pelo outro”. Porém, a realização das atividades lúdicas compensatórias, tais quais o almoço, o consumo de cachaça e o baile, parecem ter sido abandonadas, sendo o auxílio para a execução do trabalho o único elemento que permaneceu.

 

 

 

 

 

Considerando que o trabalho coletivo era fator preponderante na vida da população pobre do planalto catarinense, mostra-se razoável supormos que os elementos de solidariedade que envolviam o pixirum rompiam ou amenizavam certas barreiras, inclusive de caráter étnico. As diferenças entre elementos de grupos étnicos distintos poderiam ser suplantadas pela necessidade de ajuda para o trabalho e pela noção de solidariedade. Como os pixiruns reuniam praticamente as mesmas pessoas diversas vezes ao longo do ano, a tendência era de uma aproximação entre os indivíduos do bairro rural.

 

 

 

 

 

Constata-se o potencial mobilizador do pixirum no fato de que, apesar do sertanejo não possuir condições de fornecer a alimentação ou promover uma festa de encerramento – normas elementares de organização – em alguns desses casos, os vizinhos, percebendo que um deles estava ‘apurado’, combinavam o auxílio, sem nenhuma convocação prévia. Aquele que estivesse em melhores condições materiais disponibilizava o alimento, cedendo um animal para o abate. Nessas situações, em que a espontaneidade regia a organização do pixirum – sem o conhecimento prévio do beneficiário – fica demonstrada a profundidade das relações solidárias dentro da sociedade sertaneja.

 

 

 

 

 

 

 

 

SOLIDARIEDADE

Em decorrência das evidências, podemos admitir que esta prática, que harmonizava trabalho e diversão, exprimia algumas características importantes do mundo vivenciado pelos nossos antepassados. Uma profunda solidariedade, cujas relações estendiam-se por regiões distantes e interconectavam moradores de diferentes e longínquos bairros rurais. O pixirumconquanto uma necessidade de sobrevivência do sertanejo pobre, também representava um momento de celebração daquele modo de vida, no qual trabalho e diversão andavam de mãos dadas e cuja motivação não dependia apenas da necessidade, mas também da solidariedade. De todo o exposto, podemos destacar o caráter igualitário da reunião de trabalho e da celebração festiva e, principalmente, a ocorrência de pixiruns espontâneos – realizados sem convocação – o que nos permite compreender o modo de pensar daquelas pessoas, que se percebiam como iguais e dessa forma construíam o seu viver. Temos muito a aprender com eles!